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O papel estratégico das cotas, Carlos Vogt

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07 de março, 2003

O papel estratégico das cotas CARLOS VOGT O peso das desigualdades sociais legadas pelo regime de escravidão permanece como um problema a ser solucionado no inconsciente do país. Ainda que geneticistas e antropólogos tenham provas irrefutáveis daquilo que, na prática, podemos facilmente concluir -por baixo da pele, seja parda, negra ou branca, somos todos iguais-, as oportunidades sociais ainda refletem uma desproporção exagerada em relação à distribuição racial da população brasileira.A origem do problema que há séculos resistimos em enfrentar tem representação clara nos romances e crônicas de Machado de Assis. As relações entre brancos senhores e negros escravos, ou libertos, na obra machadiana nos ensina a compreender o Brasil de consciência infeliz e incapaz de superar as distâncias sociais que permeavam a proximidade emocional e tutelar do patriarcalismo familiar que marcou -e ainda marca- boa parte da cultura de nossas relações individuais e institucionais.Por exemplo, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de 1880, a visão de além-túmulo que o narrador tem de si mesmo é mais crua e mais direta quando contemplada à luz de seus relacionamentos, ainda criança, com escravos da casa: “Um dia quebrei a cabeça de uma escrava porque me negara uma colher de doce de coco que estava fazendo e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho e, não satisfeito com a travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha seis anos”.Apenas esse excerto leva a pensar que há mais acertos do que erros, no que diz respeito à população negra brasileira, em medidas como as que contemplam cotas nas universidades ou ressarcimentos por perdas históricas para as comunidades remanescentes dos quilombos.O Brasil fez um grande esforço intelectual para tentar resgatar as diferenças sociais decorrentes do modelo econômico que adotou no século 19. Essa produção, voltada para a formação da nação brasileira, inclui trabalhos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Jr., Antonio Candido, Celso Furtado e outros importantes autores e mostra que a parcela de afrodescendentes da população acabou vivendo o drama de problemas sociais decorrentes do modo de trabalho escravo.No final do século, a libertação criou a ilusão de uma sociedade aberta, mas que, na realidade, não tinha a perspectiva de integração dos negros. A sociedade era condescendente do ponto de vista das relações inter-raciais, mas essa ilusória democracia racial carregava sérios problemas de discriminação.A proposta de ajuste de contas com o passado que aparece na obra desses autores foi muitas vezes atropelada pelas transformações mundiais que ocorreram a partir da Segunda Grande Guerra, floresceram após a Guerra Fria e irromperam depois de um conjunto de mudanças marcadas pela queda do muro de Berlim, no final dos anos 80.Sob a égide neoliberal da globalização nos anos 90, o esforço volta-se agora para a superação dos problemas sociais que se acumularam. Dura tarefa, pois, de certo modo, os instrumentos que o neoliberalismo oferece à democracia são os mesmos que limitam a liberdade, que constitui esse regime, à liberdade de circulação financeira.O desafio atual é o de tornar ética e social a essência pragmática da globalização. Hoje perfilado entre os países de economia emergente, o Brasil também deve resolver os graves problemas sociais que ainda permanecem para emergir efetivamente. Entre esses problemas, que sugerem a adoção de medidas estruturais e emergenciais para serem solucionados, está a desproporcional oferta de oportunidades na área educacional a cidadãos autodeclarados brancos, pardos e negros.É preciso que se criem condições para o pleno cumprimento do inciso IV do artigo 3º da Constituição brasileira: “Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. E a reserva de cotas na universidade aparece como uma política pública compensatória de caráter afirmativo para eliminar o estigma social da origem da população negra e acelerar seu acesso a todos os quadros da hierarquia social de forma equitativa e proporcional. Dificuldades operacionais devem aparecer durante a implantação do sistema, mas elas são próprias de iniciativas que propõem mudanças efetivas na sociedade.Em paralelo a medidas estruturais, cujos resultados aparecem no longo prazo, como a melhoria da qualidade e a ampliação do acesso à educação fundamental e média, a Lei de Cotas é mais que legítima e deve ser vista como estratégia emergencial para acelerar o processo; e deve ser substituída quando resultados mais permanentes de políticas estruturais permitirem uma distribuição equitativa, e portanto justa, das oportunidades que o conhecimento oferece.É legítima porque mostra o lado mais espetacular, mais forte e mais aparente da desigualdade social produzida no país.Carlos Vogt, 60, poeta e linguista, é vice-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e presidente da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi reitor da Unicamp (1990-94).Fonte: Folha de São Paulo, 07.03.2003.

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