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Sem servidores públicos estáveis, a democracia não se sustenta, diz especialista

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21 de agosto, 2025

Professora Gabriela Lotta, da FGV, argumenta que desvalorização da burocracia ameaça o acesso a direitos

Gabriela Lotta é professora de administração pública da FGV (Fundação Getulio Vargas) e coordenadora do núcleo de estudos da burocracia. É doutora em ciência política e mestre e graduada em administração pública. Foi professora visitante de diversas universidades internacionais, incluindo Oxford. Em 2021 foi apontada como uma das 100 acadêmicas mais influentes do mundo na área de governo.

Quando falamos em burocracia, muita gente pensa em papelada, carimbo e fila. Mas burocracia, na verdade, é muito mais do que isso. Ela é o conjunto de pessoas, regras e instituições que fazem o Estado funcionar todos os dias. São os servidores públicos que aplicam políticas, tomam decisões e garantem ou não o acesso a direitos. Da escola ao posto de saúde, da assistência social à segurança, é por meio da burocracia que o Estado chega até o cidadão. A professora Gabriela Lotta, uma das maiores especialistas do país nesses temas.

A palavra burocracia parece ser sempre assustadora, e a figura do servidor público é muitas vezes demonizada na opinião pública. Isso é reflexo de quê? Quais interesses se beneficiam dessa narrativa?

Primeiro, existe muita confusão sobre o que significa “burocracia”. No senso comum, a palavra costuma ser associada a coisas negativas: excesso de papelada, procedimentos lentos e demorados. Mas, na sua origem, burocracia quer dizer justamente o contrário: são procedimentos estáveis e racionais, criados para dar mais eficiência e garantir que as coisas funcionem e cheguem ao resultado esperado. O que normalmente chamamos de “burocracia” de forma pejorativa, na verdade, são as falhas ou distorções desses procedimentos – quando eles viram algo exagerado ou cheio de exceções.

O termo também é usado para falar do corpo de funcionários que trabalha no Estado – os servidores públicos, ou “burocratas”. Aqui, a imagem negativa também é forte. Muita gente associa o servidor público à ideia de “marajá”: alguém que ganha muito e trabalha pouco. É verdade que existem casos assim, mas eles são menos de 0,1% do funcionalismo público. Hoje, mais de 70% dos servidores no Brasil ganham menos de R$ 5 mil por mês. O problema é que, no discurso popular, se coloca sob o mesmo rótulo tanto quem ganha salários altíssimos no Judiciário quanto professores e policiais que muitas vezes trabalham três turnos por dia para receber bem menos.

Essa visão negativa é problemática por dois motivos. Primeiro, porque não corresponde aos fatos. Segundo, porque a solução que costuma ser vendida é “acabar com a burocracia” e “acabar com o funcionalismo público”. O que esse discurso esconde é que, sem burocracia (no sentido de regras e procedimentos racionais) e sem servidores públicos estáveis, a democracia e a cidadania não se sustentam.

Por exemplo: eleições só acontecem de forma regular porque existem regras claras e servidores concursados que garantem o processo, independentemente de quem está no governo. A educação básica universal, garantida pela Constituição, só existe porque temos normas para manter as escolas funcionando e professores contratados para ensinar, sem depender da vontade do prefeito ou governador do momento. Até para que todo cidadão tenha um documento como CPF ou RG, é preciso haver procedimentos e servidores — caso contrário, um governo poderia simplesmente decidir que um grupo de pessoas não merece ter documento. Esses exemplos mostram que a vida em sociedade e a democracia dependem da burocracia e do funcionalismo público. Acabar com eles significaria acabar com direitos, com a estabilidade das instituições e com a ideia de que todos somos iguais perante a lei.

Em que medida a burocracia brasileira reproduz as desigualdades estruturam o país? O Estado brasileiro trata igualmente seus cidadãos? Ou a face do Estado muda conforme a classe social, o gênero e a raça do cidadão?

A sociedade brasileira é profundamente desigual e, sendo o estado um reflexo da sociedade, o Estado brasileiro reproduz essa desigualdade tanto internamente como no tratamento dos cidadãos. Quando olhamos por exemplo para a composição da burocracia, ou seja, o perfil dos funcionários públicos, essa desigualdade é muito evidente. As posições e carreiras que remuneram melhor e têm mais acesso a poder – como de juízes, promotores, procuradores e auditores- são as que têm uma composição majoritariamente masculina e branca. Enquanto as carreiras com menor remuneração – como as de professores, profissionais da saúde e assistência social – são majoritariamente femininas e negras. Essa desigualdade de composição também se reflete em desigualdades na maneira como o Estado trata os cidadãos e nos resultados de parte das políticas públicas. É só pensar no caso da polícia que, em geral, trata de maneira mais violenta as pessoas negras. Enquanto o Estado não for mais igualitário e representativo, é muito difícil termos políticas públicas que alterem de maneira estrutural as desigualdades sociais.

A sociedade brasileira é profundamente desigual. Como o Estado é um reflexo da sociedade, ele também reproduz essas desigualdades — tanto dentro da sua própria estrutura quanto no tratamento dado aos cidadãos.

Se olharmos para a composição da burocracia, ou seja, o perfil dos servidores públicos, isso fica muito claro. As carreiras mais bem pagas e com mais poder — como juízes, promotores, procuradores e auditores — são compostas, em sua maioria, por homens brancos. Já as carreiras com menor remuneração — como professores, profissionais da saúde e da assistência social — são ocupadas, principalmente, por mulheres negras.

Essa desigualdade de quem ocupa quais cargos também aparece na forma como o Estado trata a população e nos resultados de algumas políticas públicas. Um exemplo é a atuação da polícia, que costuma ser mais violenta com pessoas negras. Enquanto o Estado não for mais representativo e igualitário, será muito difícil termos políticas públicas capazes de mudar de forma estrutural as desigualdades sociais no Brasil.

Agentes públicos da ponta, como professores, policiais e assistentes sociais, decidem políticas na prática. Até que ponto essas decisões individuais moldam o sucesso ou fracasso das políticas públicas? Como a precariedade e a falta de reconhecimento impactam a ação dos profissionais da linha de frente?

Os profissionais da linha de frente dos serviços públicos são a “face do Estado” para a população. É com eles que o cidadão comum tem contato no dia a dia — professores, policiais, agentes de saúde, motoristas de ônibus. Quase ninguém encontra um prefeito ou deputado na rua, mas todos lidam com esses trabalhadores. A imagem que as pessoas têm sobre o Estado e sobre a política nasce, em grande parte, dessas interações cotidianas.

Além disso, o que esses profissionais fazem no dia a dia é, na prática, a política pública acontecendo. O que um professor faz em sala de aula é a política de educação. O que um médico faz no consultório é o SUS funcionando. Isso porque eles têm poder real de decisão nas situações concretas que enfrentam, e essas decisões dependem de como veem o cidadão, do conhecimento que possuem e dos recursos que têm para trabalhar.

O problema é que justamente esses profissionais — que garantem os direitos e sustentam os serviços — são os menos valorizados no serviço público: recebem piores salários, enfrentam más condições de trabalho, muita pressão, excesso de demanda e pouca formação. E, para piorar, a maioria é formada por mulheres e pessoas negras, que muitas vezes já vivem outras vulnerabilidades.

Se o Estado quer melhorar as políticas públicas, precisa valorizar quem está na ponta: pagar melhor, oferecer formação de qualidade e garantir recursos para que tomem boas decisões. Sem isso, vamos continuar forçando esses trabalhadores a lidar com condições precárias — e quem perde com isso é toda a sociedade.

RAIO-X | Gabriela Lotta

Professora de administração pública da FGV e coordenadora do núcleo de estudos da burocracia. É doutora em ciência política e mestre e graduada em administração pública. Foi professora visitante de diversas universidades internacionais, incluindo Oxford. Em 2021 foi apontada como uma das 100 acadêmicas mais influentes do mundo na área de governo.

Fonte: Folha de São Paulo