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Reforma administrativa mantém militares com privilégios preservados

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10 de outubro, 2025

Proposta evita ajustes nos privilégios das Forças Armadas e foca apenas em magistrados e Ministério Público

A chamada reforma administrativa, apresentada em três peças legislativas — uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), um Projeto de Lei (Marco Legal da Administração Pública) e um Projeto de Lei Complementar (Lei de Responsabilidade por Resultados) — foi divulgada pela Câmara dos Deputados e coordenada pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), relator e coordenador do grupo de trabalho responsável pelo texto.

A proposta, construída sob forte influência do Centrão, foi anunciada como um marco para modernizar o Estado, racionalizar carreiras, eliminar privilégios e vincular remuneração ao desempenho. Na prática, porém, a leitura detalhada dos documentos mostra uma omissão notável: as Forças Armadas foram completamente poupadas de qualquer ajuste, revisão de benefícios ou inclusão de regras de transição que as aproximem das demais carreiras civis.

Nos dispositivos dedicados à chamada “extinção de privilégios”, tanto o texto constitucional quanto o Marco Legal concentram-se exclusivamente no sistema de Justiça. O discurso de Pedro Paulo e de integrantes do grupo de trabalho enfatiza a necessidade de conter supersalários, limitar verbas indenizatórias e vedar aposentadorias compulsórias como forma de punição, mas omite por completo a situação das Forças Armadas. Nenhuma linha menciona adicionais por tempo de serviço, licenças especiais ou gratificações de representação militar, que permanecem intocadas.

Essa ausência chama atenção por contraste. A mesma Câmara que defende a uniformização de critérios de progressão e avaliação para professores, analistas e técnicos manteve intacto um sistema historicamente protegido de qualquer medida de transparência efetiva. O regime militar, regido pelos artigos 42 e 142 da Constituição, continua funcionando à margem do esforço de reorganização administrativa, protegido por um manto de exceção institucional. Fontes próximas ao grupo de Pedro Paulo admitem que não houve consenso político para incluir militares no pacote, por temor de reação das cúpulas das Forças.

O Marco Legal da Administração Pública, também coordenado sob a supervisão do deputado, foi apresentado como instrumento para disciplinar a gestão e prevenir conflitos de interesse. O termo “quarentena” aparece apenas em sentido restrito: trata da passagem de ex-agentes públicos para a iniciativa privada. A quarentena eleitoral, que poderia limitar o uso político da farda e estabelecer um período mínimo de afastamento para militares que desejem disputar eleições, simplesmente não aparece. Essa omissão, segundo técnicos ouvidos pela coluna, foi mantida de propósito para evitar desgaste político com setores militares aliados ao Centrão e à cúpula da Câmara.

Já o Projeto de Lei Complementar, que cria a Lei de Responsabilidade por Resultados, tampouco faz qualquer menção a alterações no regime militar. O texto cita os militares apenas uma vez, em um parágrafo técnico, para determinar que despesas de pessoal devem distinguir ativos e inativos civis e militares — uma formalidade contábil, sem impacto real sobre benefícios, promoções ou aposentadorias especiais. Pedro Paulo, ao apresentar o relatório, defendeu que o foco da reforma fosse “a modernização da gestão civil” e evitou mencionar qualquer ajuste nas Forças Armadas.

Na prática, o conjunto da reforma reforça um recorte político. O grupo de trabalho coordenado por Pedro Paulo buscou um alvo de fácil consenso — o sistema de Justiça — e evitou abrir conflito com as Forças Armadas, cuja capacidade de pressão institucional segue elevada. Ao deixar o regime militar intocado, o texto preserva um dos segmentos mais caros da máquina pública, responsável por uma fatia crescente do orçamento federal e por aposentadorias com valores médios muito acima das carreiras civis equivalentes. A articulação do Centrão assegurou que o texto avançasse sem gerar atrito com as lideranças militares ou comprometer alianças políticas.

O discurso de isonomia, que sustenta a narrativa de modernização administrativa, se torna frágil diante dessa omissão. Especialistas em administração pública e direito constitucional apontam que, sem incluir os militares na lógica de controle de gastos, avaliação de desempenho e limitação de penduricalhos, a promessa de “fim dos privilégios” perde coerência. O resultado é uma reforma que mira apenas o funcionalismo civil e cria uma nova camada de desigualdade entre servidores de um mesmo Estado.

Outro ponto sensível é a ausência de qualquer debate sobre a participação política de militares. A falta de uma quarentena eleitoral específica perpetua a confusão entre o papel institucional das Forças Armadas e a atuação partidária de seus membros. Em um contexto recente marcado pela politização de fardas, pela presença de oficiais em cargos civis e por candidaturas diretas de militares da ativa e da reserva, a omissão legislativa parece deliberada. Evita-se o confronto, mas também se renuncia a um debate essencial sobre a separação entre Estado e poder militar.

A comparação com outras categorias evidencia o desequilíbrio: professores, servidores administrativos e técnicos serão submetidos a metas rígidas, avaliação anual, teletrabalho limitado e bonificações condicionadas a resultados. Enquanto isso, o contingente militar, que consome uma parcela significativa das despesas obrigatórias com pessoal e previdência, permanece intocado e fora do alcance das novas regras de desempenho e transparência.

Reforma carrega omissões estratégicas

A economista e procuradora Élida Graziane reforça a crítica ao lembrar que os militares mantêm um regime funcional oneroso e pouco transparente. Segundo ela: “Militares têm um regime funcional muito oneroso para a sociedade, mas sem suficiente contrapartida, escrutínio público e controle:

“É como se os militares gozassem de um welfare state peculiar, que nenhuma outra categoria de cidadão pode usufruir.”

A administradora Daniela Montori, graduada em Administração Pública pela FGV e com mais de 20 anos de experiência no setor de distribuição de combustíveis, também critica o desequilíbrio da proposta: “A reforma administrativa é um tema importantíssimo para que tenhamos um Estado, cada vez mais, moderno e eficiente. Traz à luz a possibilidade de oferecer à sociedade serviços de qualidade realizados por agentes públicos comprometidos, além de promover adequações nos gastos públicos e aprimoramento de gestão, algo tão criticado, principalmente pelo mercado. Acredito que essa reformulação seja algo bem-visto pela sociedade como um todo”, afirma.

“No entanto, ‘esquecer’ propositalmente dos militares, nessa discussão, deixa a proposta incompleta, desigual e politicamente comprometida. Contemplar duras mudanças aos servidores civis, sem qualquer contribuição dos militares no processo de ampliação dos ganhos fiscais e no equilíbrio das contas públicas, descredibiliza o desafio de equalizar direitos e deveres de maneira justa e universal entre todos os servidores. Para que a reforma realmente faça diferença, todos os segmentos do serviço público precisam estar juntos nessa transformação.

Tirar os militares da proposta reforça a ideia de que a reforma tem um viés seletivo, que protege grupos historicamente com maior poder de pressão em detrimento dos demais trabalhadores do serviço público. O Brasil precisa avançar a passos mais largos; essa forma antiga e enferrujada de preservar alguns e faltar com a transparência só provoca mais desigualdade. Além disso, a participação dos militares na política recente demonstra que esse é exatamente o momento crucial para trazê-los para o centro da discussão, promovendo responsabilidade e controle sobre o papel de cada agente e respectivos gastos no aparato estatal.”

Ao final, a reforma administrativa chega ao Congresso travestida de modernização, mas carregando omissões estratégicas. O conjunto de normas impõe rigidez e controle sobre os civis e poupa integralmente a estrutura militar, uma das mais beneficiadas historicamente por exceções constitucionais. O resultado é um pacote que promete racionalizar o Estado, mas que reforça desigualdades internas e perpetua privilégios sob o silêncio conveniente das casernas — com a chancela de Pedro Paulo, da Câmara e do Centrão que conduziram a proposta.

Fonte: ICL Notícias