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Injúria racial. Ofensas proferidas contra pessoa branca. Inexistência de racismo reverso. Atipicidade da conduta.

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25 de fevereiro, 2025

A questão em discussão consiste em saber se é possível que um homem negro pratique o crime de injúria racial contra uma pessoa branca, considerando a interpretação das normas de combate ao racismo e discriminação racial.
No caso, imputa-se ao paciente, homem negro, a conduta de ter ofendido a honra de terceiro, homem branco de descendência europeia, chamando-o de “escravista cabeça branca europeia”.
Primeiramente, cumpre observar que os fatos foram praticados em 6/7/2023 de modo que o tipo penal vigente relativo ao crime de injúria racial é o do art. 2º-A da Lei n. 7.716/1989 cuja pena é de 2 a 5 anos, e multa conforme redação dada pela Lei n. 14.532/2023.
A redação do dispositivo em questão estabeleceu que a injúria será qualificada quando presentes as elementares normativas raça, cor, etnia e procedência nacional.
O próprio legislador, no art. 20-C, incluído pela Lei n. 14.532/2023, dispôs que: “Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.”.
Embora não haja margem a dúvidas sobre o limite hermenêutico da norma, é necessário reforço argumentativo para rechaçar qualquer concepção tendente a conceber a existência do denominado racismo reverso.
O racismo é um fenômeno social construído com base no contexto histórico do século XVI, notabilizando-se a partir de invasões, espoliações e dominação dos povos europeus, especialmente sobre aqueles que vivam na América, África e Ásia. Assim, a estigmatização humana não foi outra coisa senão uma forma de hierarquizar e inferiorizar todos aqueles que foram considerados inferiores pelos que se apresentaram como colonizadores.
Recentemente o Conselho Nacional de Justiça aprovou o Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, fazendo consignar que: “O racismo é também definido como uma forma sistemática de discriminação baseada na raça, que se expressa por práticas conscientes ou inconscientes, resultando em desvantagens ou privilégios para indivíduos, conforme o grupo racial ao qual pertencem. Trata-se de um tipo de retórica cultural e prática social que funciona como um mecanismo psicológico e cultural, no qual membros do grupo racial dominante negam sistematicamente o reconhecimento da humanidade comum a todas as pessoas, com o objetivo de preservar seu status privilegiado em diversas esferas da vida.”.
Ainda que seja possível observar que a evolução jurídica das sociedades, especialmente com base no conceito de igualdade material derivado de movimentos Iluministas, tenha tentado arrefecer as estruturas do racismo, o fato é que tal dinâmica segue estabelecida. Em outras palavras, o racismo como fenômeno estruturado, acaba por se revelar, muitas vezes, em atos e posturas silenciosas.
No Brasil, por exemplo, mesmo após a Lei Áurea e a Proclamação da República, registra-se o conteúdo do Decreto n. 528 de 28 de junho de 1890, em que se estabeleceu a livre entrada de qualquer pessoa apta ao trabalho – não foragidos da Justiça de seus Países de origem -, à exceção de indígenas da Ásia ou da África, legislando em clara seletividade racial.
Após a Segunda Guerra Mundial, como consectários ainda do nazifascimo que mirou perversamente também os negros, foi editada a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, adotada pela ONU em 21 de dezembro de 1965. A convenção foi incorporada à legislação brasileira por meio do Decreto n. 65.810 de 8 de dezembro de 1969, assumindo, portanto, caráter cogente.
Esses precedentes históricos e interpretativos levam a crer que a injúria racial sempre objetivou tutelar – precisamente quando se refere à elementar raça ou cor – os grupos de pessoas que, em razão destas características físicas, foram alijadas de todos os benefícios sociais.
Mais recentemente, o Brasil firmou, visando à reafirmação e aperfeiçoamento da Convenção mencionada, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância que foi incorporada ao direito interno com status de norma constitucional (art. 5º, § 3º, da Constitucional Federal) conforme o Decreto n. 10.932/2022. Na ocasião, a comunidade interamericana levou em conta, expressamente, que as vítimas do racismo, da discriminação racial e de outras formas correlatas de intolerância nas Américas são, entre outras, afrodescendentes, povos indígenas, bem como outros grupos e minorias raciais e étnicas ou grupos que por sua ascendência ou origem nacional ou étnica são afetados por essas manifestações.
Assim, o caráter cogente de tais normas de direitos humanos impõe que os Estados signatários implementem combate efetivo ao racismo e à discriminação racial, abordando aspectos legais, institucionais, educacionais, sociais e de conscientização.
Pelo Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial editado pelo Conselho Nacional de Justiça propõe-se a adoção de interpretações do direito que estejam atentas às realidades concretas, especialmente aquelas vivenciadas pela população afrodescendente.
Por esse documento, chama-se atenção ao desejo de incutir no âmbito do Judiciário Brasileiro o conceito de Consciência Racial, segundo o qual: […] transcende a mera identificação étnico-racial, envolvendo o reconhecimento da necessidade de enfrentar coletivamente os efeitos sistêmicos da discriminação histórica entre negros e brancos. Isso inclui a percepção da predominância branca em posições de poder e a responsabilidade de combater o sistema racial estrutural na sociedade brasileira. Vai além de denúncias, exigindo posturas e práticas antirracistas concretas.
Portanto, como forma de concretizar essas diretrizes, é fundamental que se afaste qualquer miopia jurídica sobre o objeto de proteção do crime de injúria racial. É dizer: o tipo penal do art. 2º-A da Lei 7.716/1989 não se configura no caso de ofensa baseada na cor da pele que se dirija contra pessoa branca por esta condição.
A injúria racial, conforme o art. 2º-A da Lei n. 7.716/1989, visa proteger grupos minoritários historicamente discriminados, não se aplicando a ofensas dirigidas a pessoas brancas por sua condição. O conceito de racismo reverso é rejeitado, pois o racismo é um fenômeno estrutural que historicamente afeta grupos minoritários, não se aplicando a grupos majoritários em posições de poder.
A expressão “grupos minoritários” induvidosamente não se refere ao contingente populacional de determinada coletividade, mas àqueles que, ainda que sejam numericamente majoritários, não estão igualmente representados nos espaços de poder, público ou privado, que são frequentemente discriminados inclusive pelo próprio Estado e que, na prática, têm menos acesso ao exercício pleno da cidadania.
Portanto, é inviável a interpretação de existência do crime de injúria racial cometido contra pessoa, cuja pele seja de cor branca, quando tal característica for o cerne da ofensa.
Vale esclarecer que a conclusão exposta não resulta na impossibilidade de uma pessoa branca ser ofendida por uma pessoa negra. A honra de todas as pessoas é protegida pela lei, inclusive pelo tipo penal da injúria simples (caput do art. 140 do Código Penal). Contudo, especificamente a injúria racial, caracterizada pelo elemento de discriminação em exame, não se configura no caso em apreço, sem prejuízo do exame de eventual ofensa à honra, desde que sob adequada tipificação.
Assim, deve ser afastada qualquer interpretação que considere existente o crime de injúria racial quando se tratar de ofensa dirigida a uma pessoa de pele de cor branca, exclusivamente por esta condição. STJ, 1ª T., HC 929.002-AL, Rel. Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 4/2/2025 STJ, Informativo nº 839.