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Funcionários da Funai relatam rotina de medo, perseguição e anti-indígena

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21 de julho, 2022

No governo de Jair Bolsonaro (PL), a corrosão institucional do órgão acontece por dentro. Quem deveria resguardar os direitos indígenas, atua para burlá-los

Entristecidos, adoecidos e revoltados. Esse é o sentimento predominante entre os servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) atualmente. Os assassinatos do colega indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Philips apontaram os holofotes da mídia e da sociedade para a situação de risco sofrida por quem se dedica a promover e defender os direitos indígenas no Brasil.

Ameaças de morte – e a concretização do crime – não são novidades para os funcionários da Funai. As dificuldades em cumprir a missão institucional do órgão são históricas e atravessam governos. Mesmo em gestões mais comprometidas com a causa, o trabalho sempre avança aos poucos, emparedado por pressões de setores influentes que disputam com os indígenas a posse da terra no País.

Apesar de sabedores dos antigos problemas de infraestrutura e de força política da Funai, os servidores do órgão vivem hoje uma situação que não tem paralelo com outros momentos do passado. Se antes a Funai precisava disputar orçamento e a agenda indígena com ministérios “rivais”, agora, no governo de Jair Bolsonaro (PL), a corrosão institucional do órgão, conforme contam os servidores, acontece por dentro. Quem deveria resguardar os direitos indígenas, atua para burlá-los. Quem deveria proteger os indígenas das ameaças de grileiros, fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, trabalha a favor justamente dos grupos inimigos. É a Funai “anti- indígena”, conforme dossiê recentemente publicado pela associação Indigenistas Associados (INA) e o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

O sentimento de desânimo generalizado afeta também João Mitia, funcionário da Coordenação Regional do Litoral Sul, com sede em Florianópolis. Funcionário da Funai desde 2010, ele nasceu em meio à defesa dos povos indígenas. Seu pai, sua mãe e seu irmão trabalham com a temática. Ao entrar no órgão, inicialmente serviu na Coordenação Regional Araguaia Tocantins, em Palmas. Em 2015 foi transferido para a Coordenação Regional do Litoral Sul, que abrange a costa do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além de determinadas regiões no interior catarinense. Com formação em Direito, sua transferência se deu para que ajudasse na regularização fundiária na região, um dos principais problemas dos povos indígenas no Sul do Brasil.

“A gente está permanentemente exposto ao risco. Essa situação que aconteceu com o Bruno e com o Maxciel (servidor assassinado no Pará, em 2019) deixa isso muito evidente. É raro você encontrar um servidor da Funai que trabalha em campo e que nunca recebeu uma ameaça de morte. Eu já recebi, tanto na Amazônia legal quanto aqui no Sul e isso não é exclusividade minha, é uma situação que se repete por todo o País”, afirma.

Mitia refuta a “mística” do indigenista e do ambientalista que quer ser herói ou é só um idealista. Diz que os servidores não querem tal “pecha” e anseiam apenas cumprir com suas funções. “A gente quer trabalhar com dignidade, quer respeito, a gente quer voltar pra casa dos nossos filhos e levantar no dia seguinte pra trabalhar com segurança. Ninguém quer ser herói. O Bruno não queria ser herói, queria fazer o trabalho dele de proteger aquela terra. Ele tinha três filhos. Ninguém quer ser alvo de madeireiro, de fazendeiro, de grileiro que arrenda a terra. A gente quer fazer o nosso trabalho com dignidade, respeito, segurança e voltar pra casa pra cuidar das nossas famílias.”

Após o momento de consternação pública e repercussão internacional pelos assassinatos na Amazônia, ele acredita que os servidores e os indígenas seguirão sofrendo violência, se providências não forem tomadas em relação ao que acontece no governo Bolsonaro. “Tá todo mundo apreensivo, com receio. Quem tem oportunidade de sair do órgão, sai, o que é uma grande pena pra um órgão já tão fragilizado.”

Ele ressalta que o termo “desmonte”, comumente utilizado, não sintetiza fielmente o que acontece na Funai hoje em dia. A estrutura do órgão tem sido usada para fazer o inverso do que preconiza sua missão institucional. Mitia afirma que a Funai está “capturada” e sendo utilizado para fins que não correspondem aos objetivos da política indigenista. “O órgão está tomado por representantes de pessoas de confiança de setores que são antagônicos aos direitos indígenas e às lutas históricas dos povos indígenas.”

A opinião de Mitia não é isolada. Pelo contrário. Fernando de Luiz Brito Vianna, presidente da associação Indigenistas Associados (INA), concorda e vai além. Ele avalia que mesmo em governos mais à esquerda, como no caso das gestões da ex-presidenta Dilma Rousseff e de Lula, a defesa dos direitos indígenas sempre foi uma área mais fraca, que sofria pressão de setores centrais no governo. Ainda assim, conta que a situação agora é dramática. A mudança, afirma Vianna, começou logo após o impeachment de Dilma e o início do governo de Michel Temer (MDB), agravada no governo Bolsonaro.

“Não há menor dúvida de que no governo Temer e, sobretudo, no governo Bolsonaro, a coisa ficou radicalizada. Não é apenas um órgão fraco dentro do governo que sofre pressão de outros órgãos mais fortes. “No governo Bolsonaro, a pauta anti-indígena passou a ditar a própria execução da política indigenista. E as pessoas que estão no comando da Funai, hoje em dia, estão comprometidas com esses interesses. Nos outros governos, a Funai tinha aquele bastião da Constituição e dos direitos indígenas garantidos que permitia trabalhar, e aí era sempre muita luta dentro do governo para não ser atropelado. Agora a lógica é contrária, é por dentro da Funai e minando os direitos indígenas. Isso é muito chocante”, explica o presidente da INA, atualmente em licença do órgão.

Assédio, ameaça, pressão

“De índio não entendo. Entendo é de dar tapa na cara de vagabundo.” A frase foi dita por um policial federal aposentado alçado ao cargo de coordenador regional logo no começo do governo Bolsonaro, conforme consta no dossiê publicado pela associação Indigenistas Associados (INA) e pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Há relatos de que a mesma pessoa costumava comandar reuniões com uma pistola sobre a mesa – o nome dele é omitido para não colocar em risco os servidores.

O caso ilustra um pouco do que tem sido a rotina dos funcionários da Funai Brasil afora. Os servidores relatam que a neutralização do trabalho indigenista tem sido feita de várias formas. O assédio moral e o assédio institucional (conceito trazido em estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) é generalizado.

A estratégia do governo Bolsonaro tem sido a de alterar as normativas infra-legais dos órgãos, com apoio de pareceres encomendados, visto que mudar a legislação é mais difícil. No caso da Funai, essa estratégia tem imposto restrições ao trabalho dos servidores. Um exemplo é o parecer que restringiu a atuação dos funcionários somente em terras indígenas já homologadas. Nas regiões Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste, isso atrapalha o trabalho porque 90% das terras indígenas não estão com os processos de regularização fundiária concluídos.

Os servidores se sentem constrangidos, sabedores de que o dever não é atuar só em terra homologada. Há outras etapas importantes e nas quais os funcionários da Funai sempre atuaram, como a proteção territorial ou mesmo dar andamento nos processos de demarcação para que eles sejam concluídos. Com pareceres e instruções normativas abaixo da lei, o governo vai assim conseguindo bloquear as tarefas do órgão, situação só alterada se houver decisão judicial que aponte ilegalidade na orientação de atuar apenas em terra homologada.

Outra maneira que tem sido usada pelo governo para sabotar o trabalho dos indigenistas é criar um caminho burocrático para dificultar os trâmites da rotina de atuação. Agora, para o servidor fazer uma atividade de campo, a autorização precisa vir da presidência da Funai, em Brasília, e não mais das coordenações regionais, o que agilizava o processo.

O presidente da associação Indigenistas Associados (INA) explica que o servidor se vê numa sinuca de bico: se for a campo sem autorização, depois pode ser acusado de ter feito algo irregular; ou o trabalho pode não ter validade dentro do órgão. Outra opção é simplesmente não ir e, assim, o atendimento aos indígenas fica precarizado.

Com tudo isso, Vianna conta que o clima na Funai é de absoluta perseguição contra aqueles que trabalham na defesa dos direitos indígenas. A perseguição muitas vezes se traduz no deslocamento da pessoa de setor, tirada de uma área técnica e transferida para outra burocrática. Outro modo é fazer com que o servidor não consiga mais acessar certos documentos e processos administrativos que estava acostumado a acompanhar sobre temas importantes.

Ele relata que o atual presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, um delegado da Polícia Federal, quando “pega no pé” de algum servidor, não só exonera do cargo como também pede investigação criminal pela Polícia Federal. Usar a PF para intimidar tem sido uma prática também contra lideranças indígenas conhecidas internacionalmente.

“Ele usa uma forma de constrangimento muito pesada com os servidores. E é claro que isso gera um clima de terror, muitas pessoas são retiradas dos setores técnicos, outras por medo deixam de trabalhar direito. Há um clima de perseguição aos servidores que trabalham na defesa dos direitos indígenas”, afirma. “É um clima muito pesado de falta de diálogo e de perseguição a indígenas e servidores.”

O dossiê Fundação Anti-Indígena mostra que, atualmente, das 39 Coordenações Regionais (CR) da Funai, apenas duas têm como chefes servidores do órgão. Em 10 delas o comando é feito por servidores na condição de substituto, sem coordenador regional titular. E em 27 CRs, os chefes são de fora do quadro da Funai: são 17 militares, três policiais militares, um policial federal e seis profissionais sem vínculo anterior com a administração pública.

Apesar do elevado número de policiais e militares nas coordenações regionais e na própria presidência, Vianna não avalia que a política do governo Bolsonaro tenha uma linha ideológica militarizada. Para ele, a política em curso no órgão é sobretudo ruralista. Os cargos são ocupados por muitos militares, mas os interesses têm ligação com o ruralismo e a mineração na Amazônia.

“Acho que não é uma linha ideológica militar. A linha é de defesa dos interesses daqueles setores que disputam a posse da terra com os indígenas nas diferentes regiões do País. Essa é a orientação muito clara na Funai e quem executa é esse delegado da Polícia Federal”, analisa o presidente da INA.

Por sua vez, João Mitia critica o despreparo dos militares para atuarem em órgãos que exigem conhecimento específico. E lembra que eles costumam trazer para o debate público o “fantasma” da soberania nacional ao questionar a demarcação de terra indígena em área de fronteira, algo que, na sua avaliação, não condiz com a realidade.

“Historicamente muitos desses povos foram os que garantiram as fronteiras do País e o que está acontecendo hoje na Amazônia, no Vale do Javari, por exemplo, deixa claro a incompetência dos militares de garantir o território, porque aquela região onde o Bruno desapareceu é tudo área de fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Os militares ali têm jurisdição pra atuar independente de se tratar de terra indígena ou de unidade de conservação, porque é área de fronteira, e eles não fazem. O crime organizado tomou conta daquilo. Então como eles sustentam esse discurso de que as terras indígenas são ameaças à soberania nacional? A incompetência deles é uma ameaça à soberania nacional”, comenta o servidor.

A postura dos militares na Amazônia também é criticada pelo cientista social João Maurício Farias, ex-chefe do Núcleo de Apoio da Funai em Porto Alegre e ex-coordenador regional da CR Litoral Sul, em Santa Catarina. Ele destaca a visão militar de não admitir os direitos dos povos indígenas, além das ideias de ocupação da Amazônia com fins de explorar seus recursos naturais.

A tal “soberania do território nacional”, expressão tão usada pelos militares, para ele ocorre ao avesso na região amazônica, com o território dominado pelo crime e não pelo Estado brasileiro.

Fora da Funai desde 2015, durante o período em que foi coordenador regional, Farias costumava se encontrar com o indigenista Bruno Pereira, que tinha cargo semelhante no Vale do Javari. A lembrança do ex-colega é de uma figura dedicada à causa indígena.

“Foi muito impactante saber da morte dele e da forma como foi assassinado. Uma figura super dedicada e um amigo. Ele trazia uma energia de renovação da Funai, uma mudança que a Funai buscou ter a partir do mandato do presidente Lula, que trabalhou pra reestruturar e fortalecer a Funai. O Bruno tinha uma ternura muito grande com os indígenas. Ele não era um herói, ele fazia o trabalho dele com extrema dedicação.”

A esperança equilibrista

O ex-coordenador regional, embora atualmente fora da Funai, segue envolvido e estudando a questão indígena, agora num curso de doutorado. Em sua avaliação, somente com a mudança do governo federal será possível retomar o processo de fortalecimento do órgão, com recursos para demarcação de terras indígenas.

O sentimento e perspectiva futura de Farias é compartilhado pela ex-colega Mariana Martins Maciel, também ex-chefe da Coordenação Técnica Local (CTL) da Funai em Porto Alegre. Geógrafa e atualmente professora de escola indígena na Lomba do Pinheiro, na Capital, ela vê com tristeza o que acontece no órgão.

Conta que já havia a ideia do que poderia acontecer no governo Bolsonaro, todavia, a realidade foi ainda pior. “É muito triste ver tudo isso e acho que vai demorar bastante pra gente conseguir reverter todos os estragos que foram feitos, além das coisas que são irreversíveis.”

O processo eleitoral lhe dá esperança de, ao menos, conseguir retomar políticas e práticas que foram abandonadas pelo atual governo, como o fortalecimento da Funai, as políticas sociais e, principalmente, que as demarcações de terra sejam desengavetadas.

Jorge Carvalho, ex-chefe de posto na aldeia indígena de Cacique Doble, no interior do RS, é outro ex-servidor que alimenta esperança de tempos melhores, apesar do momento em que o ódio e a intolerância parecem prevalecer.

“Não vai ser fácil. A gente voltou pra antes de 1964. Vamos ter muito pra voltar, pra chegar aonde a gente estava. A luta não é fácil. Muita energia, muita resiliência e união. A rede é pequena, mas é forte. A gente tem que acreditar que vai conseguir”, almeja.

Carvalho entrou na Funai em 2007 e saiu em 2017. Atuou também como chefe de divisão na Funai de Passo Fundo e, em 2010, foi transferido para a Coordenação Técnica Local em Porto Alegre. Durante o período na Capital, atendia prioritariamente os povos Kaingang e Charrua. Era o único responsável sobre temas envolvendo cerca de 20 aldeias em Porto Alegre, Lajeado, São Leopoldo, Estrela, Santa Maria e Pelotas. Mariana atendia sozinha quase 40 aldeias.

Com cargos comissionados, Carvalho e Mariana foram ‘saídos’ do órgão durante o governo Temer, quando uma nova filosofia de trabalho afastou as pessoas que haviam entrado no período dos governos petistas. “A gente era visto como inimigo político e a questão indígena não tem nada disso, não tem esquerda e direita. Na Funai tem colegas com várias posições políticas e todos são indigenistas”, explica Carvalho.

Com ela a situação foi semelhante. “Não foi nada pessoal, eles tiraram quem estava ali trabalhando pela causa indígena”, recorda Mariana, que conta também ter sofrido ameaças enquanto esteve no órgão. “Todos os colegas que trabalharam ou trabalham na Funai, de alguma forma sofrem ameaças constantemente e agora muito mais nesse governo anti-indígena que a gente está vivenciando. Incomoda o governo quem realmente quer trabalhar, combater o arrendamento, a pesca ilegal, a mineração, as diversas violações que os indígenas sofrem diariamente”, afirma.

Durante os tempos de chefe de posto na aldeia indígena de Cacique Doble, Carvalho conta ter sofrido grande resistência de fazendeiros da região. Costumava sair de Porto Alegre na noite de domingo e chegava na aldeia de madrugada para começar o trabalho no dia seguinte. Não foram poucas as vezes em que, de dentro do ônibus, o telefone tocava com chamadas ameaçadoras. “Recebia ligação enquanto tava no ônibus com alguém me dizendo que iria me matar quando chegasse lá. Domingo sim, domingo não, recebia ligação nesse nível.”

Apesar dos riscos, as recordações e aprendizados pelos dois anos vividos dentro da aldeia mudaram sua vida. Os ensinamentos, a experiência de vida, a simplicidade, a profundidade do conhecimento do tempo e da natureza dos indígenas são atributos que o transformaram.

“Todo mundo deveria conhecer um pouco mais da cultura (indígena) pra entender melhor a vida. A pureza deles é muito grande. São pessoas que dividem o que têm, mesmo tendo às vezes insuficiente pra elas, e fazem com muito carinho. São pessoas com profundo conhecimento da vida. Tem que viver pra entender o que é.”

Fonte: Sul 21

 

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